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Dois projetos discutidos nesta quinta-feira (25), na Câmara de Santos, evocam essa pergunta. Nós achamos que a resposta é não. Até porque achamos que a razão está sempre do lado de quem luta para sobreviver, de quem tem fome, de quem depende das políticas públicas como um todo.

O trabalho legislativo deveria utilizar suas atribuições de forma a amparar essas pessoas. O trabalho legislativo não deveria servir para coibir, cercear quem já vive à margem do que se considera uma vida normal, cada vez mais rara, com emprego e renda certa a cada fim de mês.

“Temos que parar de agir com o coração e usar a razão”, disse, por exemplo, o vereador Rui de Rosis (MDB, 1º Mandato), ao defender seu projeto de lei complementar, que visa proibir a atuação de vendedores, malabares, pedintes e flanelinhas nas ruas para não prejudicar o trânsito, não importunar motoristas e evitar situações de “coação” aos condutores.

O projeto, que acrescenta incisos ao artigo 200 do Código de Posturas do Município, teve pereceres favoráveis de duas comissões e foi pautado em 1ª discussão nesta quinta (25). Já falamos dele aqui, neste link.

Ao ter seu projeto classificado pela vereadora Telma de Souza (PT, 3º Mandato) como um trabalho com “nuances higienistas”, o atual presidente da Câmara protestou. “Jamais pensei em ser higienista. Mas não podemos deixar essa situação desandar. Eu moro nesta cidade há 65 anos e acho que esse é o pior momento disso. Não conheço uma pessoa que está usando desses subterfúgios nas ruas que seja da nossa cidade. Estamos credenciando bandidos a trabalhar nas nossas ruas. Eu sei que tem algumas pessoas que são simples e precisam, mas a maioria é de pessoas que não têm esse coração”, disse.

Perguntamos: os ambulantes e artistas que usam as ruas para retirar seu sustento diante da falta de oportunidades de trabalhos formais devem ser tratados do mesmo jeito que os ditos “guardadores de carros”, que realmente intimidam motoristas?

Ao invés de fazer leis que coloquem todos no mesmo saco, que tal cobrar a fiscalização dos flanelinhas que agem errado? Que tal cobrar a implementação de programas de geração de emprego e renda para prevenir o crescimento desordenado do número de pessoas trabalhando nos semáforos?

Após muita insistência, De Rosis acabou aceitando o apelo do vereador Benedito Furtado (PSB, 5º Mandato) e retirou a proposta para fazer ajustes com auxílio das comissões.

Na sequência, a Câmara passou a discutir outro projeto que recolocou a questão da suposta “racionalidade” ao legislar, nem que para isso se vire as costas para públicos vulneráveis, como gestantes sem plano de saúde e seus filhos recém-nascidos.

Neste momento a tal da razão passou para outra esfera. Passou a ser expressa nas letras minúsculas dos contratos de concessão pública e para os números complicados e pouco transparentes das planilhas financeiras das empresas.

Explicamos: Em análise estava o projeto do vereador Chico Nogueira (PT, 1º Mandato),  voltado para a gratuidade das passagens de ônibus a mulheres no período pré e pós natal. A proposta prevê o benefício temporário apenas para as que tenham sido atendidas pela rede pública, ou seja, as que têm menos recursos.

O líder do governo na Câmara, Adilson Júnior (PDT, 3º Mandato), tratou de ressaltar que a concessionária do transporte público tem suas planilhas de custos, que não pode sair dando isenções, que há impactos no sistema. “Se formos só pela razão, é impossível derrubar o parecer contrário. Fere os princípios legais. De fato a tarifa é cara, mas era para ser mais cara. Pelas justificativas e pleitos da concessionária, era para ser muito mais”, disse.

E complementou que propostas como essa de instituir gratuidades no transporte público podem alimentar vãs esperanças. “As planilhas são complicadas, mas elas existem. Temos que saber de onde será tirado esse subsídio. De onde vai sair? Do orçamento da Saúde, da Educação, da Secretaria de Esportes? Porque é muito fácil a gente aprovar isso, gerar uma expectativa nas pessoas, a Prefeitura depois vetar e a gente acabar acatando o veto”.

Apesar dos argumentos pragmáticos, o parecer contrário que impedia o projeto de seguir tramitando foi derrubado. Ironicamente, o próprio Adilson votou contra o parecer contrário e o projeto ganhou sobrevida.

E o clima esquentou

Quando a sessão caminhava para o fim, um entrevero acordou os parlamentares já cansados. A vereadora Audrey Kleys (Progressistas, 1º Mandato) não gostou do modo como o veterano Manoel Constantino (MDB, 9º Mandato) reagiu ao seu pronunciamento diante de um requerimento que pede a transferência da UME Hilda Rabaça, na Vila Alemoa, para um prédio com condições mais dignas. Hoje a escola funciona em um imóvel alugado com muitos problemas e limitações.

A vereadora falou sobre a precariedade do local e da necessidade imediata de transferência das crianças para um espaço mais adequado. Constantino, na visão da progressista, teria dado a entender que quando ela esteve no Executivo poderia ter mudado essa situação.

“Não brinque com a minha passagem pela Secretaria de Educação. Trabalhamos muito duro lá. E se essa demanda não foi atendida, não foi por falta de esforço nosso”, disse ela.

Constantino pediu um aparte para tentar se explicar e Audrey não deu. O vereador Adlson entrou na discussão e disparou: “mas se como secretaria adjunta essa situação não mudou, então porque agora com um requerimento a situação mudaria? Eu não consigo entender. Fica parecendo que uma secretária adjunta não tem função nenhuma”.

“Não foi isso que eu disse!” rebateu de pronto a vereadora.

Com a palavra, Constantino fez graça da situação e ironizou: “eu estava sentindo falta dessa agitação. Há tempos que essa casa está muito calma. Tanto que outro dia disseram que eu cochilei aqui”, riu.

Rusgas e farpas à parte, o fato é que as crianças da escola da Alemoa seguem há mais de uma década sem resposta das autoridades…

Assim como as pessoas sem emprego seguem fazendo malabarismos no trânsito para comer… Assim como a empresa de ônibus detentora de um contrato altíssimo segue lucrando e manipulando planilhas financeiras difíceis de entender…

E as autoridades? Essas gostam de discursar. Filosofam até sobre “razão” e “coração”, mas agem pouco. Ou, quando agem, o fazem pautadas em interesses guiados por uma “razão” que não é a de quem mais precisa do poder público.